Trabalho apresentado no Encontro para Responsáveis pelos Ranchos de Romeiros de S. Miguel
Em 21 de Novembro de 2010
Em 21 de Novembro de 2010
Por: Fernando Maré (Antigo Mestre de romeiros da Ribeira Seca)
Tema: A visita ás casas de Nossa Senhora
1 - A tradição das nossas romarias quaresmais. (Preâmbulo do Regulamento)
2 - O conceito do Regulamento (a visita ao maior numero de Igrejas e Ermidas de S. Miguel – art.º n.º 1.
3 - A realidade actual.
1 - A tradição das nossas romarias
Segundo reza a tradição, as nossas romarias tiveram como causa remota as calamidades públicas que ocorreram com os terramotos e erupções vulcânicas de 22 de Outubro de 1522 e 25 de Junho de 1563, que embora se sentissem em toda a Ilha, arrasaram Vila Franca do Campo e prejudicaram gravemente a Ribeira Grande.
Nesses momentos de aflição, as pessoas juntavam-se e andavam pelas ruas cantando e rezando, todos os dias, visitando todas as igrejas e ermidas dedicadas a de Nossa Senhora, suplicando protecção do Céu e, cheios de Fé, confiantes que as suas súplicas eram ouvidas pelo Altíssimo, por intermédio de Maria Santíssima.
Depois quando a terra deixou de tremer e os vulcões se calaram, as pessoas tiveram que reconstruir as suas casas e limpar as cinzas e pedras dos terrenos, para que estes pudessem produzir o trigo e o milho para sua alimentação. Por isso já não podiam visitar as casas de Nossa Senhora todos os dias, mas não se esqueceram daqueles momentos de aflição e continuaram a fazer as romarias apenas ás quartas-feiras. Não se sabe quantos anos continuaram as romarias às quartas-feiras, o certo é que muitos anos depois resolveram fazer como é hoje, em vez de um dia por semana passou a ser uma semana por ano, na época da quaresma, por ser um tempo próprio para a penitência e oração e também por haver poucos trabalhos na agricultura.
Portanto, uma semana a fazer penitência e a rezar por si e pelos outros, pedindo e agradecendo, visitando o maior numero de igrejas e ermidas dedicadas a Nossa Senhora, daí a chamada visita ás Casas de Nossa Senhora, em S. Miguel, e muito importante, ao passarem pelos povoados vão pregando com o seu testemunho a penitência, a oração, o sacrifício e a renúncia, e vão recebendo os pedidos de orações e rezas das pessoas, que acreditam na força da oração dos romeiros, e por isso vão deixando também atrás de si uma onda de oração.
2 - O conceito do Regulamento
Vou começar por pedir desculpa aos irmãos por agora ter de falar um pouco de mim, o que não gosto, mas para justificar a necessidade que houve de regulamentar as romarias quaresmais de S. Miguel.
Em 1958, tinha eu 16 anos, quando fui a primeira vez numa romaria por promessa, numa freguesia vizinha porque na minha freguesia não havia romaria porque não tinha mestre, muito embora uma grande parte dos romeiros que iam nesse rancho fosse da minha freguesia. Devo dizer que gostei imenso. A minha presença nesse rancho suscitou a ideia dos romeiros mais antigos de organizarmos um rancho na nossa freguesia e eu ir como ajudante. Ora eu gostei muito, vi como faziam o mestre, o contra mestre e os ajudantes, mas não percebia mais nada. Preparei-me com algumas orações e no ano seguinte organizamos um rancho na nossa freguesia, falamos um mestre de fora e lá fui ajudando o mestre nas orações. A meio da semana, no dia do encontro das famílias, o referido mestre falou com o padre da nossa paróquia e após a missa disse a toda a gente que dali para a frente, eu é que era o mestre. Ora eu fiquei bastante preocupado porque só sabia umas pequenas orações (naquele tempo um mestre tinha que saber muitas orações e grandes) e eu só tinha 2 anos de romaria, por conseguinte, tinha pouca experiência e era bastante novo. Em face de tudo isso senti necessidade de aprender mais sobre romeiros e romarias e, fui algumas vezes á Bretanha, a casa do mestre que nos acompanhou para me ensinar orações e algumas questões técnicas sobre as romarias, e também comecei a acompanhar quase todos os ranchos que passavam na minha zona para ver como faziam, e dando pernoita a alguns ranchos, porque a minha freguesia como não tinha rancho de romeiros também não dava pernoita a ninguém.
Ora, ao acompanhar esses ranchos aprendi muita coisa boa mas também me apercebi de alguns excessos, alguma indisciplina, alguns comportamentos que não tinham nada a ver com o verdadeiro espírito da romaria que são a penitência, a oração, o sacrifício, a partilha, a renúncia. Vi ranchos que se espalhavam por 3 ou 4 lugares, distantes uns dos outros, da freguesia para fazerem a refeição, houve um rancho que foi comer ao pé das caldeiras da Lagoa das Furnas e alguns foram tomar banho na lagoa e um deles ia morrendo, havia alguns ranchos que autorizavam que romeiros ao passar em determinadas freguesias ficassem a visitar familiares dando ocasião a alguns excessos, havia mestres de romeiros que só faziam as orações nas igrejas principais e depois iam fora do rancho conversando com outras pessoas, e muitas outras coisas. Estes comportamentos preocupavam-me bastante, e eu pouco podia fazer porque tinha poucos créditos porque era muito novo, mas,,, não cruzei os braços.
Naquele tempo muito poucos eram os padres que ligavam aos romeiros, e tinham as suas razões, porque também eram muito poucos os romeiros que davam testemunho de verdadeiros romeiros. Alguns mestres armavam-se em pessoas importantes e chegavam a insurgir-se contra os respectivos párocos pelo facto de serem mestres de romeiros, e liderarem um grupo de homens, mas conheci 3 padres que mostravam um certo carinho e apoiavam espiritualmente os romeiros, que eram o Sr. Padre Rogério Machado da Pedreira do Nordeste, o Sr. padre Adriano Mendonça dos Arrifes e o Sr. Padre José Ribeiro ao tempo na Fajã de Baixo.
Vocês desculpem estar a referir estas situações detectadas em 1958 e 1959, mas acho que é necessário para se aperceberem da necessidade que havia de criar um Regulamento para as nossas romarias.
Como tinha mais confiança com o Sr. Padre José Ribeiro, desloquei-me algumas vezes a sua casa e partilhei com ele as minhas preocupações em relação aos romeiros. Sei que ele falou várias vezes com o Sr. Padre Adriano Mendonça e que puseram o problema ao Sr. Bispo, D. Manuel Afonso de Carvalho que aceitou de bom grado e se comprometeu a criar um Regulamento, isso em 1959/60. Sabia que essas promessas não caíram em saco roto porque tanto o Srs. Padres Adriano e José Ribeiro como um tal senhor Laurénio dos Arrifes, pessoa muito ligada ao Sr. Bispo, me solicitavam a mim e ao Mestre dos Arrifes, pai do actual mestre Adriano, e certamente a mais algumas pessoas, mais algumas informações com vista a criar o Regulamento, até que:
Em 1962 D. Manuel Afonso de Carvalho aprova o Regulamento dos Romeiros de S. Miguel, cuja preocupação dominante demonstrada nos seus Capítulos e artigos é a de preservar a originalidade das Romarias Quaresmais na fidelidade á tradição, com espírito de sacrifício, penitência, oração, renúncia, a partilha.
Entretanto criou-se um grupo de Responsáveis pelas Romarias Quaresmais constituído por António Silva Director do antigo Banco Micaelense e romeiro, Adriano de Medeiros mestre dos Arrifes e eu, não nomeados, mas a nível particular, com o apoio de alguns padres, e á experiência para ver da aceitação desse grupo pelos responsáveis dos ranchos e da capacidade de desempenhar a missão que era a de cumprir e fazer cumprir as normas do Regulamento, organizar retiros para os responsáveis, e apoiá-los no que fosse possível e necessário.
Fizemos vários retiros de 2 dias, ao fim de semana, com dormida e refeições no antigo Seminário do Santo Cristo em Ponta Delgada, com uma parte prática e outra doutrinal, convidando para tal elementos de outros movimentos de São Miguel.
Das provas dadas por esse grupo e da sua renovação por outros elementos ao longo dos anos é que nasce o actual Grupo Coordenador, já nomeado pelo Ordinário da Diocese, com a mesma missão que tinha o Grupo de Responsáveis pelas Romarias Quaresmais e outros poderes instituídos conforme consta do presente Regulamento, que entretanto já foi actualizado em 1989 por D. Aurélio Granada Escudeiro e em 2003 por D. António de Sousa Braga.
3 - A realidade actual
Graças a Deus que as nossas romarias de hoje são muito mais bem organizadas, disciplinadas e vividas do que as romarias dos anos 50;
Hoje já não se vê ranchos de romeiros aos grupos pelas estradas, uns rezando, outros conversando e outros fumando;
Hoje dá gosto ver os ranchos sempre formados, quer na passagem pelas freguesias quer nas estradas, sempre cantando ou rezando em voz alta, mesmo as orações e rezas dentro das igrejas e ermidas fazem em voz alta.
Hoje já não se vê romeiros pelas lojas e levando nas sacas bebidas alcoólicas;
Hoje já se pode afirmar que todos os ranchos têm uma preparação prática e doutrinal de pelo menos 20 horas, que antes não tinham;
Hoje já há a preocupação de missa diária, que antes não havia;
Hoje até já há momentos de meditação, de reflexão e de catequese de adultos;
Hoje, felizmente, todos os ranchos são muitos mais disciplinados do que nos anos 50.
Mas… Mas… Mas…
Está acontecendo situações que é preciso rectificar e fazer cumprir o Regulamento.
È um dever e obrigação do Grupo Coordenador de zelar pelo cumprimento do presente Regulamento, nomeadamente no seu Capítulo I, Art.º n.º 1 que diz o seguinte:
Denominam-se Romeiros de São Miguel os grupos de católicos que, organizados em ranchos por localidades, se propõem visitar, durante o Tempo da Quaresma, o maior número de Igrejas e Ermidas da Ilha de São Miguel, cantando e rezando em todo o percurso.
Infelizmente há muitos ranchos que não estão cumprindo este artigo.
Há muitos ranchos que não controlam o andamento, fazem refeições prolongadas e horas de descanso e depois deixam Igrejas e Ermidas, as tais Casas de Nossa Senhora, para trás.
Há muitos ranchos que demoram horas em Santana, à saída de Rabo de Peixe, e depois quando chegam á Igreja da Ribeira Seca seguem directamente para a Ribeira Grande, deixando para trás uma Igreja Paroquial e 4 ermidas.
Há alguns ranchos que têm horas de descanso e não vão a Agua Retorta, não vão ao Faial da Terra, não vão à Ribeira Quente, não vão á Ribeira Chã, não vão aos Remédios da Lagoa, não vão ao Cabouco, não vão á Fajã de Cima, não vão à Covoada ou á Relva, não vão ás Sete Cidades nem aos Mosteiros, não vão a Santa Barbara de Santo António, não vão a São Vicente, não vão aos Aflitos nem ao Pico da Pedra, nem a São Braz, e outras freguesias que não sei.
È verdade que o tempo às vezes não permite ir a esta ou àquela freguesia.
È verdade que não se pode ir a todas as freguesias, mas também é verdade que são muitas freguesias que ficam para trás e que ás vezes a oferta de um almoço ao rancho serve de pretexto para demorar mais um bocado e não ir a esta ou aquela freguesia.
O romeiro não vai dar a volta à Ilha, o romeiro vais fazer penitência, oração, sacrifício, renúncia e, com a sua passagem pelos povoados, vai pregando esses valores e, com as rezas que lhe vão sendo pedidas vai deixando uma onda de oração atrás de si.
Acho que alguns responsáveis estão a cair no facilitismo e a esquecer o espírito de sacrifício, reduzindo assim a onda de oração que um rancho de romeiros deixa atrás de si.
E outra coisa que chamo a atenção de todos os responsáveis é da grande necessidade que há de fazer incutir nos romeiros a vivência cristã no antes e no pós romaria.
Quem gosta e vive a romaria, certamente que não gosta de ouvir de fora que os romeiros são muito bons cristãos apenas na semana da romaria, e que depois, durante todo o ano, nunca mais aparecem na igreja, e outros aparecem algumas vezes. Isto é lançar as romarias no descrédito. Isto é um péssimo testemunho de um romeiro. Infelizmente isso acontece em todos os ranchos. Há que combater essa mentalidade de que ir numa romaria se reza pelo ano inteiro. Cabe aos responsáveis continuar a insistir sobre este assunto quer nas reuniões de preparação, quer nas reflexões e meditações durante a semana da romaria, quer nas reuniões mensais do pós romaria.
Vamos todos em conjunto, de mãos dadas, trabalhar para preservar, dignificar e aperfeiçoar as nossas romarias e contribuir para melhorar a vivência cristã dos nossos romeiros.